Desenvolvimento Comunitário

Ilha de Olinda: onde as mulheres não têm sono

As mulheres de Olinda dizem ter medo de se deslocarem às suas machambas e temer pela sorte dos maridos

As mulheres de Olinda, uma pequena ilha do Posto Administrativo de Mucupia, Distrito de Inhassunge, Província da Zambézia, vivem aterrorizadas, devido a um clima de intimidação e perseguição, instalado na Ilha, desde que foi para ali fixada, em condições permanentes, um destacamento da Unidade de Intervenção Rápida (UIR). No passado mês de Julho a polícia disparou contra populares indefesos, causando um morto e vários feridos, além da detenção de outros, incluindo o líder da aldeia. Os camponeses manifestavam-se pacificamente, protestando contra o plano do governo de os retirar das suas terras, entretanto concessionadas a uma empresa chinesa, que pretende explorar, ali, areias pesadas.

Desde este incidente, as mulheres de Olinda vivem com medo, receando deslocar-se às suas machambas, onde cultivam e recolhem produtos para preparar as suas refeições. “Quando os nossos maridos saem para fora da Ilha, à procura de meios de subsistência, ficamos sempre em pânico. Porque não sabemos se vão regressar sãos e salvos”, dizem elas. Acrescentam que o pânico piora ainda quando os filhos saem de casa, pois não sabem o que lhes poderá acontecer “lá fora”.

“Aqui ninguém dorme, só de pensar em abandonar as machambas e as árvores de fruta para ir a um novo lugar onde vamos queimar com o Sol, porque não há nem sequer sombras. A nossa situação é muito complicada”, desabafa Zita, nome fictício de uma camponesa local.

SEKELEKANI esteve na Ilha, com o propósito de entender, mais de perto, o impacto que o clima de crispação, entre as populações e o governo tem tido sobre a mulher, enquanto pilar fundamental da subsistência das famílias. Perante um ambiente de medo generalizado, a pesquisa decorreu sob condições de quase-clandestinidade, já que as mulheres pediam sistematicamente para não serem identificadas, sob o risco de represálias, se reconhecidas como tendo prestado declarações a…”pessoas estranhas”.

Uma comunidade aterrorizada

Na perceção da comunidade, a presença permanente deste quartel da UIR tem como único propósito levar a cabo ações repressivas contra ela, devido a um único motivo: a sua indagação sobre o seu futuro, caso seja dali retirada, para dar espaço à exploração de areias pesadas, por uma empresa de capitais chineses, Africa Great Wall Mining Development Company, que opera na Província da Zambézia, desde 2014.

Governo concede 16.000 hectares de terra à chinesa Africa Great Wall Mining Development CompanyO governo atribuiu à empresa Africa Great Wall Mining Development Company Diretito de Uso e Aproveitamento de Terra (DUATs) numa extensão de 1.351.95 hectares em Quelimane, 3.115,20 hectares em Chinde e 12.002.28 hectares em Inhassunge, perfazendo um total de 16.469,43 hectares. A empresa opera na Província da Zambézia desde 2014 e já explorou areias pesadas em Nicoadala, Chinde e agora vai expandir as suas actividades ao Distrito de Inhassunge.

Com efeito, o ambiente de policiamento agressivo prevalecente na localidade dificultou a pesquisa, pois as autoridades administrativas locais tudo procuram fazer para criar obstáculos. Ainda assim, e com algum esforço, a equipa do SEKELEKANI logrou ouvir algumas mulheres, que não escondem o seu repúdio a peripécias de diversa natureza, a que têm sido sujeitas.

“Dizem para irmos a Cherrimane: lá a terra nem chega para os nativos, que fazem machambas cá, na nossa ilha”.

As entrevistas, feitas em casas de membros da comunidade que ofereceram abrigo, decorreram em ambiente de medo, razão pela qual as mulheres entrevistas são aqui identificadas por nomes falsos.

Maria é casada e mãe de oito filhos. Conta que cada família possui sua residência, alguns bens, com destaque para as machambas. É onde elas e toda a comunidade produzem comida, enquanto alguns homens trabalham em Quelimane para ajudar nas despesas de casa.

ʺHá algum tempo atrás, fomos informados que temos de abandonar as nossas terras para um outro lugar, porque os chineses querem trabalhar aqui. Conforme vê, a forma como as machambas estão bonitas com as culturas que prometem dar muita produção, como iremos abandonar terra fértil para um lugar desconhecido? Questiona a Maria.

A comunidade quer saber para onde vai ser transferida, e como viverá, porque em Olinda ela possui machambas, pomares, criação de animais. Maria conta também a má experiência vivida por outras comunidades em projectos semelhantes, levadas a cabo pela mesma empresa chinesa.

ʺOutras comunidades que foram retiradas das suas terras para outros lugares, receberam as ditas novas casas, construídas pelo projecto, que são pequenas, mal feitas e têm o problema de infiltração de água quando chove ʺ conta Maria, sublinhando: ʺ nós não queremos isso! ʺ

Maria acrescenta dizendo que ʺo governo obriga-nos a sair porque diz que depois vai indemnizar-nos. Mas não é o dinheiro que nós queremos. Que nos dê terras produtivas e com mesma extensão como as que temos agora, para podermos produzir alimentos. Queremos estar próximo do mar para pescarmos porque toda a nossa vida foi essa”.

As mulheres de Olinda estão apreensivas relativamente ao seu futuro e das suas famílias

Joana, também residente de Olinda, conta que herdou as suas terras dos pais. Tem trabalhado nessas terras desde criança. Sente-se humilhada quando o próprio governo, que devia velar pelos seus direitos, aparece a desempenhar papel contrário ao de defesa do povo.

“Nunca me passou pela cabeça que o governo poderia mandar a FIR para abrir fogo contra nós, até instalar polícia aqui, para nos controlar e meter medo”. A nossa entrevistada diz que nasceu e cresceu em Olinda, e lembra que mesmo nos tempos em que a empresa Madal (que fazia fomento de coqueiro) ali operava, nunca tinha havido qualquer clima de terror como o vivido presentemente na região. “O ambiente aqui sempre foi tranquilo; Olinda nunca tinha testemunhado uma situação similar, de sermos espezinhados por causa de interesses de empresas de fora”.

Segundo explica a Joana, não é verdade que a população não quer sair dali: a população apenas exige informação sobre onde vai, quando vai sair e que condições existem no novo lugar onde será reassentada. Estas perguntas surgem pelo facto de a empresa chinesa ter deixado uma experiência amarga nas zonas por onde passou e fez a exploração de arreias pesadas, nomeadamente em Quelimane e em Chinde.

Joana diz ainda que as pessoas feridas pela FIR não receberam qualquer assistência médica. Alguns dos feridos têm membros (pernas e braços) deslocados e ferimentos nas costelas. Eles têm tido tratamentos com base em plantas medicinais locais.

Segundo contam residentes de Olinda, o governo pretende transferir a comunidade daqui, para Cherimane, uma outra ilha de Inhassunge, onde se localiza a sede do Posto Administrativo. Contudo, a Ilha de Cherimane é muito pequena, bem menor que Olinda, razão porque algumas famílias de Cherimane fazem machambas em Olinda. Esta é uma das razões porque a comunidade de Olinda receia que não terá machambas suficientes, em Cherimane, para praticar actividades agrícolas.

Zita afirma que em Olinda a terra é muito fértil e o ambiente é favorável para produção. As crianças já estão habituadas a viverem neste ambiente. Aprendem a fazer machamba e a pescarem para sobrevivência, uma vez que na ilha não há emprego nem perspectiva de se criarem postos de trabalho.

Assim, as mulheres de Olinda dizem que vivem com medo, e não sabem quando voltarão a viver em paz para voltarem às machambas e produzir comida em ambiente de tranquilidade.

População recusa diálogo após ser agredida

Segundo relatos da comunidade, jamais houve consulta comunitária; há apenas uma imposição, para a população sair de Olinda.

Depois do incidente ocorrido em que a polícia abriu fogo contra a população, representantes do governo e da empresa chinesa voltaram à Ilha, com pretexto de fazerem consulta à comunidade.

“Só depois da Polícia nos bater é que o governo pretendeu consultar-nos ”, dizem residentes de Olinda

ʺNesse encontro o governo questionou quais eram os problemas que a comunidade tinha e o que é que a população queria ver resolvido. Mas nesse encontro ninguém da comunidade falou ou comentou qualquer coisa. Todos ficamos calados. Por fim a comunidade abandonou a reunião ʺ, conta a entrevistada que acrescentou: ʺ Nós estamos muito tristes com o que estamos a viver aqui em Olindaʺ.

Assim, as mulheres de Olinda dizem que vivem com medo, e não sabem quando voltarão a viver em paz para voltarem às machambas e produzir comida em ambiente de tranquilidade.

Pedir esclarecimentos ao governo é ser violento?

Há alegações, propaladas em círculos governamentais, segundo as quais os habitantes de Olinda são “extremamente violentos”, razão porque a Polícia terá recebido ordens para entrar “com força”.

Com efeito, quando a equipa do SEKELEKANI manifestou a intenção de se deslocar à ilha, oficiais governamentais em Mucupia desencorajaram-na, dizendo: ʺNão se pode ir a Olinda, porque a população local é muito perigosa. Recentemente eles feriram cerca de 50 homens armados da polícia com recurso a paus, pedras e catanas. Por isso ninguém deve ir a Olinda sem autorização do Comando Distrital da Polícia da República de Moçambique ,PRMʺ.

Porém, tomadas algumas precauções, junto de pessoas bem informadas, a equipa do SEKELEKANI deslocou-se, no dia seguinte, a Olinda.

Ir ou não ir a Olinda- Eis a Questão!A travessia para a Ilha de Olinda é mais do que uma aventura. Por um lado devido às condições e meios precários de transporte; e por outro porque Olinda já se tornou um lugar proibido pelas autoridades oficiais, incluindo através da disseminação do mito segundo a qual a comunidade local é constituída de ilhéus perigosos e violentos…por natureza!

 

Chegar a Olinda implica atravessar o Rio dos Bons Sinais, da cidade de Quelimane, para Errecamba, na margem do lado de Inhassunge, um percurso de cerca de 20 quilómetros. Atravessa-se, ainda, um afluente do mesmo rio. De Errecamba atravessa-se para Cherrimane, viajando-se de motorizada: as motorizadas levam, além do condutor, dois passageiros, num percurso de piso arriscado. De Cherrimane, a motorizada já não passa, pois o piso o não permite: segue-se a pé, num percurso de cerca de 400 metros, até ao rio. Aqui chegados, há de novo uma barcada disponível, agora sim, com destino à ilha. Mas a povoação não se encontra logo ali: ela situa-se dali a uns 600 metros, arenosos, a percorrer, a pé: uma jornada e tanto!
Pesquisadora do SEKELEKANI, Palmira Velasco, numa barcaça para Olinda

Já na ilha, e contrariamente aos “alertas” de agressividade recebidos na véspera, quem quer que soubesse da presença dos pesquisadores, manifestava vontade espontânea de falar! Entretanto, o grupo que recebeu a equipa, instalando-a num local que considerou seguro para a conversa, viria, pouco depois, a sugerir retirada imediata da ilha, temendo que algum informante tivesse revelado à FIR a presença de “pessoas estranhas” no local.

A população, sedenta de poder falar livremente sobre os problemas que a apoquentam, na expectativa de que a sua voz seja ouvida por quem de direito, tudo fez para que a conversa com os pesquisadores tivesse lugar. E desmentiu, com a sua conduta, a alegacão segundo a qual, a agressividade da PRM era em resposta a alegados ataques violentos da comunidade,  que teria agredido 50 agentes da Polícia, armados.

A lei é clara e deve ser cumprida: as comunidades devem dar o seu livre consentimento a projectos económicos que impliquem a perda da sua terra, no culminar de consultas genuínas, antecedidas da provisão de informação completa e adequada, sobre a natureza do projecto e sobre as condições de reassentamento, com garantias de vida digna.

 

Texto: Palmira Velasco. Fotos : Nélcia Tovela

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