Desenvolvimento Comunitário

Violência baseada no género: quando a família é parte do problema…

Mais de 40 pessoas mortas em 2020-

Todo o lar é assim, minha filha: eu também sofri muito, mas aguentei, para te criar e salvar a nossa família” – é um discurso muito comum, de mãe para a filha, quando esta, vítima de violência doméstica, procura socorro junto da família. Assim desamparadas, esta é a sina que tem marcado muitos milhares de mulheres e de raparigas, obrigadas a permanecer junto do agressor, para quem nem a Justiça do Estado constitui qualquer ameaça, dada a sua insanável lentidão…

 

Por ocasião do Dia Internacional da Rapariga, que se assinala a 11 de Outubro de cada ano, SEKELEKANI apresenta a saga da violência baseada no género, expondo experiências traumatizantes de três mulheres vítimas de terrorismo doméstico e sevícias corporais, com consequências que incluem a perda de audição e graves lesões anais.

 Mais de 40 pessoas mortas em 2020

Celebra-se a 11 de Outubro o Dia Internacional de Rapariga, instituído em 2011 pela Assembleia Geral das Nações Unidas, com o objectivo de promover a protecção dos direitos das raparigas de todo o mundo e de acabar com a vulnerabilidade, a discriminação e a violência de que estas são vítimas.

A data é também pretexto para reflexões, pelo mundo fora, sobre os preconceitos e estereótipos que estão na base da disparidade de oportunidades entre géneros, no acesso e permanência na Escola, na entrada no mercado de trabalho, bem como na vida familiar e pessoal.

Com efeito, esta data celebra-se com a consciência geral de que, por detrás de discursos oficiais, estão vários milhares de raparigas ainda sem a liberdade de escolha de quando e com quem vão casar, se quiserem casar; da escola e ou do curso ou profissão que querem seguir; sem ainda acesso a serviços de saúde ou de justiça, para ajuda-las a exercer os seus direitos e a defender-se de agressores e predadores.

Segundo dados obtidos junto do Departamento de Atendimento à Família e Menores Vítimas de Violência, do Comando Geral da Policia, neste ano foram registados 6.586 casos de violência doméstica, dos quais 3.904 são de violência física simples, 1.259 de violência psicológica, 796 de violência patrimonial e 478 de violência grave dos quais resultaram 41 mortes.

Neste âmbito SEKELEKANI ouviu histórias de mulheres vítimas de violência doméstica, ora física, ora verbal ou psicológica. Para salvaguardar a sua dignidade e segurança, trocamos os seus verdadeiros nomes por nomes fictícios.

 

Eles são membros da mesma Igreja

Helena de 22 anos de idade faz parte desse grupo. Mãe de um menino de 5 anos, a Helena cresceu orientada pelos princípios sociais da sua igreja e o seu marido teve o mesmo tipo de educação, Hoje ambos desempenham funções de destaque dentro da igreja, mas nem isso tem sido suficiente para evitar que ela sofra de violência física.

A Helena conta que tudo começou quando começou a trabalhar. Aí o marido exigiu que ela lhe desse metade do seu salário para cobrir as despesas de casa. Como ela discordasse, o marido começou a agredi-la verbalmente.

“Ele dizia que ou partilhávamos o meu salario ou eu devia pegar nas minhas coisas e voltar para a casa dos meus pais”, conta ela. Daí a pouco , as agressões verbais transitaram para actos mais fisicamente violentas.

 “Num final de semana, depois de uma briga por conta da exigência de metade do meu salário, ele agrediu-me fisicamente, perante o nosso filho menor de idade. Ai fiquei marcada de hematomas e decidi sair de casa. Mas quando quis pegar as minhas coisas para ir-me embora,  ele apareceu e  trancou as portas, vedando  a minha saída”, descreve a Helena.

No dia seguinte ela arrumou os seus haveres pessoais, decidida a regressar à casa dos pais; porém o marido impediu-a de levar consigo o filho menor de idade.

 

Fingir de morta para não ser…morta

Enquanto a Helena leva um histórico de agressões psicológicas e físicas, em contexto de família, já a história da Marília tem outras nuances.

A Marília ainda vivia em casa dos pais, quando, aos 22 anos, ficou grávida do seu namorado. Os pais reagiram mal a este facto, e exigiram que ela tratasse de se casar, pois não queriam que ela se tornasse mãe ainda vivendo com eles. É já nesse período que o seu futuro marido vai manifestar o seu carácter agressivo.

A primeira agressão tem lugar em plena rua: após um convívio com amigos, a Marília mostrou o seu desagrado, por o namorado a ter tratado de forma pouco respeitosa, perante amigos. Aí o namorado travou o carro; ordenou que ela saísse e, uma vez fora, agrediu-a com pontapés, incluindo chutes contra a barriga: ela ia ao sétimo ano de gravidez!

A Marília, que  ainda vivia com os pais;  manteve segredo  deste acto agressivo do namorado, o qual era, apenas, o prenúncio  do “inferno: mais tarde a Marília vai acabar por ficar surda de um ouvido.

“Uma noite, ele pegou em mim e arrastou-me pela casa, no meio de bofetadas, e tentou matar-me por asfixia. A uma certa altura fingi-me que estava morta, para ele me soltar. Eu sangrava e tudo isso acontecia na presença dos nossos filhos, de 9 e 6 anos de idade”, conta a Marília.

Com o passar do tempo as agressões foram piorando e já envolviam o filho mais velho, que é hoje é uma criança extremamente agressiva, conta a mãe.

 

Ciúmes e adultério como causas de violência

Segundo a Chefe da secção de Atendimento a Criança no Departamento de Atendimento à Família e Menores Vítimas de Violência, no Comando Geral da Policia, Marisa Timóteo, a violência entre casais tem como principal origem os ciúmes e o mau relacionamento humano. Outros incidentes estão associados ao adultério, incluindo entre patrões e suas empregadas domésticas, acrescenta Marisa Timóteo. A oficial contou o caso de uma mulher que, grávida de seis meses,  deu à luz um nado morto, após agressão física violenta pelo marido.

 Por sua vez, crianças crescendo em tais ambientes tendem a desenvolver condutas igualmente violentas, junto dos respectivos grupos etários.

 Chefe da secção de Atendimento a Criança no Departamento de Atendimento à Família e Menores Vítimas de Violência, Marisa Timóteo

Quando a família é parte do problema…

Quer a Helena, quer a Marília, ambas recorreram as suas famílias no momento de desespero, pedido ajuda, nomeadamente expressando vontade de regressar a casa dos pais. Porém a reacção da família foi sempre no sentido de “mais paciência e coragem”. Nas habituais reuniões familiares que são promovidas para atender a este tipo de crises entre casais, as nossas entrevistadas afirmam não terem recebido qualquer tipo de apoio, ainda que fosse apenas psicológico. “A minha mãe até chegou ao ponto de pedir desculpas ao meu marido”, desabafa a Helena.

 “No dia em que as nossas famílias se reuniram, para abordar a violência em nossa casa, o meu marido disse que me espancara por eu faltar às minhas obrigações de mulher, incluindo obrigações sexuais; de cuidar bem da casa e do nosso filho. Disse que eu alegava estar sempre cansado do trabalho, obrigando a ele a cuidar da nossa casa. Aí a minha mãe acreditou e pediu-lhe desculpas”, conta a Helena.

Diferentemente da Helena, o marido da Marília, muito astuto, aceitou assinar uma declaração, na qual prometia nunca mais, em circunstância alguma, agredir a sua mulher. Mas seria Sol de pouca dura e a Marília haveria de abandonar o lar por duas vezes, regressando a casa dos pais. Porém, aqui, jamais teve o conforto que procurava. De resto, o pai já antes a considerava uma decepção, por ter abandonado a Escola, quando teve a primeira gravidez.

Depois longos anos de violência, Marília decidiu apresentar queixa na esquadra local da Polícia. Quando chamado a responder, o marido simplesmente negou todas as acusações, alegando que tinha havido apenas “algumas discussões normais de casal”, “Nesse momento eu percebi que estava casada com um psicopata. Em nenhum momento ele mostra arrependimento”

Cristina foi violada por três homens quando regressava de uma festa, da casa de uma amiga.

Ela conta que os violadores empunhavam uma catana ensanguentada e uma arma de fogo. Inicialmente pareceria um assalto comum, visando roubar-lhe seus bens pessoais, pois eles começaram por lhe arrancar o telemóvel e o dinheiro que levava consigo na carteira. A seguir começaram a apalpa-la, ao que ela resistiu energicamente, com a agravante de que se encontrava em período menstrual. Daí os agressores recorreram à violação anal, que lhe provocou sérias inflamações.

Mas o pesadelo de Cristina estava só no começo. Após contar o que lhe sucedeu e apresenta queixa à Polícia, a Cristina viu-se agora agredida pela própria mãe.

“A minha mãe começou a atacar-me, dizendo que fui agredida e violada por que quis; pois era disso que eu estava à procura, ao ir a uma festa de amigos à noite”, conta, angustiada, a Cristina. “A minha mãe insultava-me todos os dias e falava do meu caso a toda a vizinhança. Eu passava o tempo a chorar; e daí a pouco mudei-me para a casa da minha avó: não aguentava mais as agressões da minha mãe”. Mas nem aqui a Cristina viria a encontrar a paz e o conforto que procurava, pois sempre havia alguém a querer lembrar-lhe do que sofreu.

A Cristina não teve qualquer apoio psicológico; ficou tão traumatizada, que diz não mais conseguir encarar qualquer relação amorosa.

À espera dos tribunais…

 De acordo com Marisa Timóteo, na maior parte das vezes, as vítimas de violência doméstica procuram a Polícia, não necessariamente à procura de qualquer medida punitiva para o agressor, mas para simplesmente persuadir os maridos a abandonarem a violência. “Aí nós deixamos claro que violência doméstica é um crime público e que, por isso, a sua punição não depende da vontade da vítima, Contudo, de regresso a casa, a vítima é fortemente pressionada pela família, no sentido de esquecer a queixa…porque a família acha que a violência doméstica pode ser travada internamente. Contudo, o resultado é o contrário, pois o agressor sente que tem protecção dentro da própria família”, acrescenta a nossa fonte.

Ainda na explicação da Chefe da secção Gabinete de Atendimento à Família e Menores Vítimas de Violência todo processo de queixa obedece a uma sequência, que consiste no registo da ocorrência, abertura do auto, acompanhamento médico e psicológico à vitima e, assistência jurídica pelo Instituto de Apoio e Patrocínio Jurídico (IPAJ) e, do por fim, o julgamento em tribunal.

 Porém nenhuma das nossas entrevistadas nesta reportagem viu o seu agressor responder pelos seus actos em tribunal, o que transmite a ideia de impunidade, agravando os medos e os traumas de quem viu uma relação de amor transformada em histórias de terror e de sangue.

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