Democracia e Governação

Relações Moçambique -Tanzânia: Tão amigos que nós éramos…

 

Presidentes Samora Machel e Julius Nyerere : amizade baseada na solidariedade

A ausência, muito notada, do Presidente tanzaniano, na cerimónia de investidura do Presidente Filipe Nyusi, para o seu segundo mandato, no dia 15 de Janeiro de 2020, era um sinal evidente de que, em vez do banquete da Ponta Vermelha, John Magufuli quer ser convidado ao banquete bilionário do gás na Bacia do Rovuma.

Los Angeles, Outubro de 2018.

Assim que nos apresentamos uns aos outros, eu escolhi imediatamente quem iria ser o meu amigo de viagem, que ia durar perto de duas semanas, nos Estados Unidos da América: o Rashid Maganga!

Somos um grupo de editores de África, Ásia e América Latina, convidados a seguir as eleições intercalares americanas, então badaladas como críticas, enquanto antevisão das presidenciais de 2020, dado o ambiente de crispação política instigado pelo Presidente Donald Trump.

Logo que terminam as formalidades da nossa recepção, no hotel, e somos convidados para a sala de café, vou aproximar-me do Rashid, e estender-lhe a mão, pronunciando uma das muito poucas palavras de Ki-Swahili que, na circunstância, me ocorre:

– Habari! – O Rashid responde com uma frase relativamente longa, que obviamente não entendo, mas decido considerar que seja: “Estou bem, muito obrigado, meu amigo”. Quando lhe confirmo que sou jornalista moçambicano, ele reage, então, com mais entusiasmo:

– Oh, vem de Moçambique! Então como está, meu irmão?

Assim relaxado, passo logo para o Inglês, com perguntas da praxe: “Então como vai a Tanzânia? Parece que o Presidente Magufuli está determinado na luta contra a corrupção…” – O Rashid confirma, mas sem o entusiasmo que eu esperava.

E aí ele me retorna a pergunta: “E Moçambique como vai? Estamos sabendo do vosso “boom” de recursos minerais…” – Eu respondo que sim, tem sido um dos assuntos mais presentes no debate nacional, estes últimos anos. Aí ele recosta-se melhor no sofá e, encarando-me de frente, diz:

“Ah, pois! E vocês até escorraçaram vossos irmãos tanzanianos do vosso país por causa desses recursos!”

Ena! O Rachid apanha-me de surpresa! Não estava à espera! O meu estado de espírito estava bem longe; estava com outras expectativas: esperava trocar impressões com ele, a propósito da nossa missão nos EUA. Mas…não.

“Vocês, nossos irmãos! Centenas de tanzanianos regressaram às suas casas de mãos a abanar, porque vocês não lhes permitiram levar, sequer, as suas próprias roupas de Moçambique…”, diz o Rashid, alvejando-me com o olhar.

Sei, e bem, de que o meu colega tanzaniano está a falar: ele está a referir-se à campanha de repatriamento compulsivo de garimpeiros estrangeiros ilegais, que ao longo de anos extraiam, sem qualquer controlo nem proveito do Estado, as famosas pedras Rubi, de Namanhumbir, em Montepuez.

Com efeito, em 2016, após que a empresa Montepuez Rubi Mining (MNR) tomou controlo da região, sob concessão do Estado, este empreendeu uma operação de “limpeza” da zona, que enriquecia cidadãos de países tão distantes como o Mali, a Somália, o Ruanda, a Tanzânia , a Tailândia …entre outros.

A dar crédito a algumas fontes oficiais, mais de 2.500 cidadãos estrangeiros terão sido retirados compulsivamente de Namanhumbir e obrigados a regressar aos países de origem ou a rumar outros destinos.

No caso particular dos imigrantes tanzanianos, o seu repatriamento compulsivo contou com alguma colaboração de Dar-Es-Salam, que enviou autocarros a Montepuez, para os transportar de volta para casa. Entre estes estrangeiros, incluindo da Asia, sabe-se que havia já alguns bem endinheirados, no meio da longa cadeia de valor do precioso metal.

“A imprensa na Tanzânia escreveu e tem continuado a escrever bastante sobre este assunto. Há um sentimento generalizado de revolta contra Moçambique. Muitas pessoas dizem que a Frelimo e os moçambicanos são ingratos: a Tanzânia sacrificou-se duramente, apoiando a vossa luta contra o colonialismo de Portugal; e agora vocês nos expulsam do vosso país como ladrões…”

A saga de Namanhumbir

Coincidentemente, eu tinha estado em Namanhumbir recentemente. E tinha informação recolhida em primeira mão, no local, que, com esforço, procuro partilhar com o Rashid. Digo-lhe como estava a localidade de Namanhumbir e as suas diferentes aldeias, nomeadamente a aldeia de Ntoro.

Que os habitantes locais haviam abandonado a zona, arrendando as suas habitações a garimpeiros de diferentes nacionalidades. E que estes, por vezes organizados em nacionalidades, cada uma hasteava a bandeira do respectivo país na zona da sua acomodação: como se ocupação política se tratasse! Inclusivamente havia “coutadas” de Malianos, de Somalis, de Tanzanianos…

E havia matanças entre esta legião de estrangeiros e a cidadãos Moçambicanos, em ambiente de ausência, quase total, da autoridade do Estado. Que isso não era, nem podia ser, normal e muito menos tolerável. Em qualquer país do mundo. Mas, claramente, não chego a impressionar o Rashid. Muito menos a convence-lo:

“Desculpa, meu irmão! Vocês mostraram ingratidão! Muitos cidadãos tanzanianos dizem nas rádios, televisões e jornais que foram espoliados. Que o vosso governo arrancou-lhes seus bens e muitos valores em dinheiro…E estão a pedir ao Presidente Magufuli para negociar com o vosso Presidente..para eles recuperarem os seus bens, que deixaram em Moçambique”.

“Parece que o esforço de restauração e imposição da autoridade do Estado sobre os recursos naturais de Moçambique tornou o país e o seu governo “ingratos” para alguns sectores associados a economias criminosas do país vizinho”

Ainda que breve, esta conversa foi esclarecedora: alguns sectores da sociedade tanzaniana andavam furiosos com Moçambique. E parte significativa da imprensa local fazia feito eco deste sentimento: Moçambique, agora com imensos recursos naturais, tinha virado as costas ao país que foi berço da sua independência nacional, e estava a dar aos seus antigos hospedeiros políticos, tratos de polé : ingratidão tamanha!

Reposição da autoridade do Estado enerva economias criminosas

E quem teria interesse em disseminar, na Tanzânia, a ideia de um Moçambique ingrato para com o país que serviu de base segura do movimento da sua libertação do colonialismo? Muitos sectores. Desde os grupos de diferente origem, com ramificações na Tanzânia, que usam Moçambique como ponto estratégico da rota do tráfico da droga, pelo Oceano Indico, da Ásia para Europa e as Américas, até às hordas de tráfico de recursos naturais de Moçambique, como madeiras, pedras preciosas e outros. Existe, desde há vario anos, vasta e sólida informação a este respeito.

Depois da operação anti garimpo estrangeiro em 2016 em Namanhumbir, em 2017 o governo moçambicano realizou a chamada “operação tronco”, que tinha como meta o rastreio de 700 mil metros cúbicos de madeira ilegal que estaria a saque nas províncias de Cabo Delgado, Nampula, Zambezia, Tete, Manica e Sofala, e avaliada em 20 biliões de meticais. O desmantelamento de várias dezenas de “estaleiros” clandestinos não pode ter deixado de “irritar” os circuitos internacionais que beneficiavam desse negócio milionário. E alguns passam pela Tanzânia.

Resumindo: parece que o esforço de restauração e imposição da autoridade do Estado sobre os recursos naturais de Moçambique tornou o país e o seu governo “ingratos” para alguns sectores associados a economias criminosas do país vizinho. Assim, não seria de estranhar que tais sectores encarassem as investidas terroristas em território moçambicano com alguma…”tolerância”: o terrorismo pode, no mínimo, servir de nuvem de fumo que, nas suas actividades ilegais, os proteja das vistas do Estado moçambicano.

E no plano oficial, de Estado?

Plataforma na bacia do Rovuma: A Tanzânia quer uma “fatia do bolo”…

Do lado de Moçambique, tem sido evidente e manifesto um grande esforço para manter com o país que já foi a sua “retaguarda segura”, relações fortes, estáveis de cooperação. Recorde-se que nos anos 1980 a Tanzânia chegou a enviar para Moçambique um pequeno continente militar para ajudar na defesa de infraestruturas estratégicas dos ataques da Renamo, na região norte do país, nomeadamente o chamado Corredor Ferro portuário de Nacala. Agora esta cooperação torna-se ainda mais determinante, em face da violência terrorista que assola o país, e com conhecido trânsito através do país vizinho – quer por terra, quer por mar.

Em Novembro de 2020 os dois países assinaram um acordo para a troca de informações sobre as incursões de grupos armados através da fronteira comum do Rovuma e pelo mar.

Agora, no dia 11 de Janeiro corrente, o Presidente Filipe Nyusi visitou o seu homólogo, John Magufuli. No topo da agenda esteve, exactamente, o terrorismo em Moçambique. Nyusi saiu do encontro entusiasmado, dizendo que os tanzanianos garantiram-lhe que estão dispostos “a morrer connosco”, em mais este combate. Expressão muito forte!

No encontro houve momentos de grande simbolismo e fraternidade, quando o Presidente Tanzaniano disse que Nyusi era amigo da Tanzânia e conhecia muito bem este país e ambos comunicaram-se na língua Ki-Swahili.

Mas esta não é a primeira vez que eles se encontram: já haviam tido encontro semelhante, desta vez em Dodoma – a capital política tanzaniana – em 2017. Porém não há evidências imediatamente tangíveis, de que o país vizinho tenha satisfeito as expectativas de Moçambique.

Num dos mais significativos episódios mais recentes, assinalando as tendências do clima prevalecente, a Tanzânia repatriou compulsivamente, em Outubro de 2020, mais de 900 cidadãos moçambicanos, que se tinham refugiado no país, fugindo do terrorismo no norte de Cabo Delgado. O repatriamento ocorreu sem qualquer coordenação ou comunicação prévia ao Governo moçambicano, facto a que o Secretário de Estado de Cabo Delgado, Armindo Ngunga reagiu, exprimindo a indignação de Maputo:

“A ausência, muito notada, do Presidente tanzaniano, na cerimónia de investidura do Presidente Filipe Nyusi, para o seu segundo mandato, no dia 15 de Janeiro de 2020, era um sinal evidente de que, em vez do banquete da Ponta Vermelha, John Magufili quer ser convidado ao banquete bilionário da Bacia do Rovuma”.

“Aqueles nossos concidadãos estão a ser repatriados compulsivamente para Moçambique. A operação não é coordenada connosco; é compulsiva”, disse Ngunga, em entrevista à radio “Voz da América”. Independentemente do que seria expectável, inclusivamente em face dos laços etno-culturais que ligam os macondes de Moçambique aos da Tanzânia, este acto é condenável, à luz do Direito Internacional Humanitário.

Ora, para muitos analistas atentos, há muito que se tornou indisfarçável a razão deste amuo do vizinho de Norte de Moçambique: a Tanzânia não está satisfeita que todos os volumosos investimentos em torno do gás da bacia do Rovuma fiquem apenas com Moçambique.

As multinacionais decidiram investir em Moçambique, porque é economicamente mais viável: de acordo com especialistas, o fundamental das reservas de gás, offshore (fora da costa) encontra-se do lado de Moçambique, ainda que também existam bolsas de gás que entram no offshore em frente a Tanzânia.

A propósito, o economista Fernando Jorge Cardoso, Coordenador do Gabinete de Estudos Estratégicos e do Desenvolvimento do Instituto Marquês de Valle Flor, de Portugal comenta que, por causa desta sua “exclusão” dos investimentos bilionários de gás, a Tanzânia pode não sentir-se motivada a colaborar no combate ao terrorismo em Moçambique.

Fernando Cardoso (um antigo Director da Faculdade de Economia da Universidade Eduardo Mondlane) considera ser “absolutamente fundamental” que os dois governos, com o apoio de corporações multinacionais e de outros governos, se sentem e procurem chegar a uma situação em que a Tanzânia se sinta confortável com uma solução para aquilo que eles considerem também ser um interesse ou direito deles.

Visto a própria Tanzânia ser também alvo de insurgência terrorista dentro do seu território, e considerando a natureza porosa das fronteiras entre os dois países, ou há um acordo em que seja garantida ao pais vizinho uma “fatia do bolo” do Rovuma, ou “vamos ver este conflito a aparecer e a desaparecer, a perpetuar-se na zona”, considera Fernando Jorge Cardoso.

Para alguns observadores, a ausência, muito notada, do Presidente tanzaniano, na cerimónia de investidura do Presidente Filipe Nyusi, para o seu segundo mandato, no dia 15 de Janeiro de 2020, era um sinal evidente de que, em vez do banquete da Ponta Vermelha, John Magufili quer ser convidado ao banquete bilionário da Bacia do Rovuma. É nesse sentido que os dois países caminham? O tempo o dirá, mas urge!

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