Desenvolvimento Comunitário

Reassentados da Ponte Maputo-KaTembe: por que não se cumpre a lei?

A partir de pontos estratégicos da Cidade de Maputo, como a Av. 10 de Novembro, na zona do Ministério dos Negócios Estrangeiros e Cooperação, já se pode ver, imponente, a futura ponte, sobretudo à noite, ligando as duas margens da Baía de Maputo, com uma extensão de aproximadamente três quilómetros. Trata-se de uma das mais emblemáticas infra-estruturas sócio-economicas do país, que se arrisca a ser a maior ponte de África com vão suspenso.

Quando a sua construção terminar, em Dezembro do corrente ano, um futuro anunciar-se-á, pujante, do outro lado da baia, em KaTembe, zona ao longo de séculos reduzida a actividades pesqueira e agrícola, de subsistência. E já se sabe que, para dar lugar a grandes projectos sociais e económicos, incluindo uma cidadela para onde se vai mudar a sede da Assembleia da Republica, com residências de luxo, já praticamente não há terra disponível na região da baia de KaTembe: a corrida imobiliária e de iniciativas individuais esgotou-a!

Quando concluída, a ponte Maputo-KaTembe será a maior do seu gênero em África

A implementação deste projecto inclui igualmente a construção de estradas de ligação entre a Cidade de Maputo e a localidade fronteiriça da Ponta D’Ouro, incluindo o troco ligando as vilas de Boane e Bela Vista.

Custo de oportunidade

Mas, a construção de tamanha infra-estrutura implicou ocupação de extensas áreas de habitação e agrícolas, do lado da cidade de Maputo e do lado de KaTembe. Onde habitavam e trabalhavam famílias e indivíduos isoladas. Lá faziam as suas machambas, cultivando tubérculos e hortaliças; ou dedicavam-se a pequenos negócios de “montinhos de tomate”; de “tampinhas de óleo de cozinha” ou a biscates de “cola sola de sapato”; de vender “giro” para o celular ou “xicalamidade” na “Guerra Popular”… e por aí fora.

Alguns, sobretudo do lado da Cidade de Maputo, viviam em casebres precários, de paredes de papelão e cobertura de plástico. Assim, no lamacento Bairro da Malanga. Mas, antes de saírem de casa, bem cedo de manhã, para “desenrascar” a vida, tomavam uma chávena de chá quente com pão só e, de regresso, ao cair da noite, vinham preparar tsacato (folhas comestíveis de planta silvestre), que serviam com um arroz aos filhos. Aos Domingos…água e sal de perninhas de frango, com xima. Assim era a sua vida: ancorada em três factores: proximidade dos seus consumidores, clientes dos pequenos negócios de “montinhos de tomate” e “tampinhas de óleo de cozinha” realizados, se não mesmo à porta do casebre, na rua a cinco minutos de casa e… acesso a energia eléctrica! A EPC (Escola Primaria Completa) da criançada também estava ali mesmo, ao dobrar da esquina – salvando a família do insuportável fardo do “my love”.

De vendeiras de pequenos negócios em Malanga, as mulheres em Tenga ficaram “improdutivas”

Esta é a história literalizada de Amélia Homo. Ela faz parte de um total de 819 famílias retiradas do Bairro da Malanga, na Cidade de Maputo, para a região de Tenga, para dar lugar às obras da ponte. Do lado de KaTembe a obra implicou a remoção de 205 famílias, o que perfaz 1024 famílias movimentadas de um lado para o outro, entre as localidades de Tenga e Mahubo (distrito de Boane) e de Chamissava (Distrito Municipal da KaTembe). SEKELEKANI foi aos locais do resassentamento colher os testemunhos dos afectados, quase todos expressando sentimento de “abandono”, e com gritos de socorro. Seguem-se alguns depoimentos.

“Aqui em Tenga não podemos praticar qualquer negócio; não temos nem mercado. Aliás não temos nem como pensar nisso, pois nem comida temos: vivemos pedindo mandioca aos habitantes originais, para matabichar. Não temos como pagar 10 meticais por cada pão para matabichar. Na cidade, a esta hora (cerca de 12 horas) …já teria matabichado”, desabafa, desvalida, a Amélia. Nesta narração, a Amélia é secundada por Elisa, também removida da Malanga, que acrescenta: “quando amanhece não sabemos o que fazer; estamos só a sofrer e  a passar fome; não há como vendermos qualquer coisa, para ganhar a vida”.

Esta é a história literalizada de Amélia Homo. Ela faz parte de um total de 819 famílias retiradas do Bairro da Malanga, na Cidade de Maputo, para a região de Tenga, para dar lugar às obras da ponte. Do lado de KaTembe a obra implicou a remoção de 205 famílias, o que perfaz 1024 famílias movimentadas de um lado para o outro, entre as localidades de Tenga e Mahubo (distrito de Boane) e de Chamissava (Distrito Municipal da KaTembe). SEKELEKANI foi aos locais do resassentamento colher os testemunhos dos afectados, quase todos expressando sentimento de “abandono”, e com gritos de socorro. Seguem-se alguns depoimentos.

“Aqui em Tenga não podemos praticar qualquer negócio; não temos nem mercado. Aliás não temos nem como pensar nisso, pois nem comida temos: vivemos pedindo mandioca aos habitantes originais, para matabichar. Não temos como pagar 10 meticais por cada pão para matabichar. Na cidade, a esta hora (cerca de 12 horas) …já teria matabichado”, desabafa, desvalida, a Amélia. Nesta narração, a Amélia é secundada por Elisa, também removida da Malanga, que acrescenta: “quando amanhece não sabemos o que fazer; estamos só a sofrer e  a passar fome; não há como vendermos qualquer coisa, para ganhar a vida”.

“Costumamos pedir mandioca aos residentes locais para matabichar…., relatam estas mulheres

Em Tenga, aonde se concentra a maioria das famílias retiradas da zona norte da ponte (Malanga), grande parte das casas estão inacabadas. Inclusivamente, existem famílias que estão registando elevados prejuízos, com a deterioração de seus electrodomésticos, que se mentêm desligados desde 2016, altura do seu reassentamento, por falta de acesso a energia eléctrica. Este é o caso de Suminha Agostinho: no bairro da Malanga ela vendia água gelada e mariscos, servindo-se de um pequeno frigorífico. “A EDM instalou postos de transporte de energia eléctricas nas ruas, mas sem energia… Tenho ido lá com dinheiro solicitar ligação e eles sempre dizem: “vamos ai amanhã”, mas não aparecem…”. No bairro de Tenga, entretanto, há certas casas com acesso a corrente eléctrica, e outras não.

Sem acesso a energia eléctrica…recorre-se ao corte de lenha.

Este cenário significa que, se por um lado, a maioria destas famílias foram retiradas de casebres precários, e mudadas para espaços com melhor potencial de vida digna, a falta de infra-estruturas básicas, como acesso à água, à corrente eléctrica, a vias de acesso e mercados, e bem como de condições gerais de restabelecimento rápido das suas vidas, traduziu-se-lhes num elevado custo de oportunidade, aquela de vendedeiras e vendedores de “montinhos de tomate”, de “tampinhas de óleo de cozinha”, ou de “xicalamidade”….deixada para trás.

Em Mahubo: cobras, malária e vandalização de infra-estruturas

Do total de 1024 famílias retiradas de Maputo e de KaTembe para dar lugar ao projecto da ponte, 194 foram reassentadas na localidade de Mahubo. Mais do que as famílias reassentadas em Tenga, estas sentem-se “abandonadas no mato”.

“Estamos a viver em péssimas condições. Vivemos em habitações inacabadas: o dinheiro (de indemnização) que recebemos não foi suficiente para construirmos as nossas casas. Assim estamos a pedir socorro”, diz, desolado, Júlio João, acrescentando: “de tudo o que nos foi prometido nada está a acontecer”. “Gostamos parte significativa de indemnização pagando para desbravar a mata para onde fomos largados. Não estávamos à espera desta despesa, porque nunca nos disseram que nos vinham deixar numa mata como esta… para destroncarmos sozinhos”, afirma, profundamente desiludido, Júlio.

Uma habitação improvisada em Mahubo….

Segundo conta Júlio, quando o Presidente, Filipe Nyusi, visitou este ano a localidade, acompanhado do Governador da Província de Maputo, Raimundo Diomba, quiseram falar, mas não lhes foi dada a palavra. “Queríamos saber do governo se é possível jogarem as pessoas para o mato, como se fossem lixo. A água que bebemos aqui não dá nem para animais. Temos aqui mosquitos gigantes; por isso estamos a morrer de malária”, acrescenta, por seu lado, Castigo Sambo.

Para além de falta de condições básicas de vida, como acesso a água potável, regista-se em Mahubo o fenómeno de vandalização de postos de transformação de energia eléctrica, com roubo dos respectivos cabos. Nesta localidade, a reportagem do SEKELEKANI pôde constatar três postos de transformação de energia vandalizados, com fios de cobre cortados e espalhados pelo chão.

Cabos de energia da EDM cortados e espalhados pelo chão

A comunidade local acredita que sejam funcionários da própria empresa Electricidade de Moçambique (EDM) os autores destes actos de sabotagem, em que os fios de cobre são vendidos a indústrias clandestinas de fabrico de panelas. “Nós estamos convencidos de que são os próprios trabalhadores da EDM que estão a vandalizar os postos. Nós aqui dormimos às 17 horas porque fica tudo escuro logo ao cair da noite. Assim, para sair de casa devo segurar um pau para afastar o capim”, acrescenta um morador local.

Por seu lado, a mãe Elisa reclama das precárias e inseguras condições em que as crianças estudam na escola feita de tendas. “Na escola as crianças estão a ser picadas por escorpiões, e no verão elas  desmaiam de tanto calor dentro das tendas”. Dai o apelo, desesperado, de outra mãe, Alice Xadreque: “pedimos que façam pelo menos duas salas de aulas para as crianças saírem das tendas!”.

Outro grave problema enfrentado pelos reassentados de Mahubo refere-se à falta de meios de transporte: mantendo ainda fortes bases de vida na cidade de Maputo, para onde procuram deslocar-se com frequência, os novos residentes de Mahubo são obrigados a desembolsar no total, 70 meticais de ida, na razão de 35 para cada um dos sentidos.

Aguas estagnadas propiciam a reprodução de mosquitos gigantes em Mahubo

O que diz a Empresa Maputo Sul

Questionado a respeito da sabotagem das infrastuturas de transporte de energia, a Maputo Sul – empresa gestora do projecto, mostra-se impotente para travar os perpetradores de tais actos, afirmando ser “impossível fazer a guarnição constante de cada poste”.

“Há um esforço em colocar energia mas não conseguimos ficar de vigia e policiar os postes de tensão e postes eléctricos para que não sejam vandalizados. Será difícil que a zona tenha energia se passamos a vida a fazer o restabelecimento das infra-estruturas. Pedimos a ajuda da população para criarem mecanismos para evitar a vandalização dos postes”. Disse Grachane Director Executivo do Maputo Sul.

De todo o modo, está mais do que evidente que, uma vez mais, se a causa primária dos reassentamentos humanos é a emergência de projectos económicos, que são sinal de desenvolvimento, para as comunidades reassentadas estes processos são sinónimos de exclusão, pois estão longe de responder ao comando da lei (Regulamento sobre o processo de Reassentamento Resultante de Actividades Económicas), a qual determina, no seu artigo 10 (Direitos dos Afectados), o seguinte:

“São direitos das comunidades directamente afectadas”: (a) Ter restabelecido o seu nível de renda, igual ou superior ao anterior; (d) viver num espaço físico infra-estruturado, com equipamentos sociais”.

E então pergunta-se: por que não se cumpre a lei, em defesa dos reasssentados da Ponte Maputo-KaTembe?

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