Desenvolvimento Comunitário

Mussingiro ou a virgindade como mercadoria em Manica

Na Província de Manica, no centro de Moçambique, há pais que induzem as filhas a casarem-se precocemente, como forma de garantir que elas iniciem a vida adulta ainda virgens, condição pela qual eles cobram taxas aos noivos, que podem variar de uma junta de bois a cinquenta mil meticais. Assim, o mussingiro é uma das principais causas de casamentos precoces naquela região, que forçam as raparigas a abandonar a escola ainda em tenra idade.

Mussingiro e mitos

A virgindade, um dos mitos causadores de opressão à mulher em diferentes culturas do mundo, é também encarada, em alguns distritos da província de Manica, como fonte de rendimento dos pais. O pai e a mãe são generosamente agraciados, quando tiverem “garantido” que a filha vai ao casamento invicta. Juntas de bois, cabritos, roupas, dinheiro e bens de consumo são mobilizados a entrar em cena no momento do casamento. Dependendo, por vezes, do poder financeiro do pretendente, a virgindade da menina pode ser “vendida” por até 50 mil meticais, que o pai e a mãe vão repartir em partes iguais. E dizem os mitos: “qualquer omissão a este acto resulta em ira dos antepassados, que vão provocar a infertilidade da rapariga ou causar-lhe graves enfermidades”.

Além do mussingiro, nesta região de Moçambique, o casamento de uma menina pode implicar o pagamento de outras três taxas a saber: o mussingiro, que é a principal taxa, o txuma, o matxacreno e o msana. O txuma e o masana são os valores monetários a serem atribuídos como “agradecimentos” ao pai e à mãe respectivamene. Os demais familiares próximos (tios e primos) partilham o matxacreno. Reunidas todas estas taxas, o valor do casamento pode atingir os 50 mil meticais.
E como sucede com todas as mercadorias preciosas, os pais protegem a virgindade da filha com todos os meios ao seu dispor. Assim, o namoro da filha é estritamente controlado, para evitar que ela seja “desonrada” antes de ir para o lar: assim que os pais notarem que a filha ganhou algum interesse por um rapaz, mobilizam-na para instigar o jovem a preparar o casamento… antes que seja tarde!

Se a rapariga perder a virgindade fora do casamento, o autor de tal acto é procurado para se lhe assacar as correspondentes responsabilidades. Porém, não raro, o imputado jovem pode recusar-se a assumir qualquer responsabilidade, alegando não haver provas de que a menina era “imaculada” quando se conheceram, pois a “entrega” desta a ele seria sinal de que a sua conduta social não era recomendável. Ora, esta é uma alegacão difícil de refutar!
“Por isso e por outras razões, as meninas são sujeitas a casar muito cedo, para se garantir o massungiro. Algumas chegam mesmo a ser proibidas de ir à escola, pois os pais receiam que lá sejam desviadas e se envolvam com rapazes. Assim a conduta dos pais parece orientar-se mais no sentido de ganharem dinheiro das filhas e menos no de lhes garantir um bom futuro”, comenta Maria da Glória, uma mãe.

Punição dos antepassados

Com o intuito de entender, mais de perto, as circunstâncias e os fundamentos em que ocorrem estas práticas, SEKELEKANI visitou algumas comunidades dos distritos de Machipanda, Gondola e da Cidade de Chimoio, a capital provincial.

Na localidade de Chicueia, distrito de Machipanda, abordamos o respectivo régulo, Firmino Mikira. Segundo referiu ele, o mussingiro é um costume antigo, observado desde o tempo dos antepassados.

O que pode acontecer se o pretendente não tiver disponível a totalidade do dinheiro requerido, perguntamos ao régulo, que explicou: em tais circunstâncias, é cobrado ao noivo um valor inicial, como sinal de confiança, na condição de que, assim que puder, deve regressar para concluir com as suas obrigações, que constituem dever perante os parentes da noiva, vivos e mortos. E isso mesmo aconteceu com o genro do próprio régulo Mikira: quando uma das suas filhas casou, o régulo pediu 10 mil meticais pela sua virgindade. Contudo, o genro, sem dinheiro suficiente, apenas pôde pagar 2500 meticais, o que o mantém na incómoda condição de género devedor.Sucedeu o mesmo com o casamento de uma das filhas de Guidione Mapote, conforme o relato do próprio:
“Eu fiz o casamento das minhas três filhas, e segui a tradição dos antepassados, a qual diz: “toda a filha que casa deve deixar em casa algum dinheiro do seu noivo, pois o pai não pode morrer sem ‘comer’ esse dinheiro”. Mapote conta que do primeiro casamento recebeu 9 mil meticais, enquanto o noivo da terceira filha não conseguiu tirar mais do que 500 meticais. “Este jovem não tinha dinheiro”, desabafa Mapote, acrescentando: “Ainda que lhe pedisse um boi, como fazia o meu pai, ele não teria como pagar. Mas assim que ele estiver em condições, deve vir suprir a sua dívida”.

Segundo as crenças locais, se uma menina for ao lar sem que o novo tenha pago estas taxas, o seu lar não fica seguro, poisos espíritos dos antepassados estarão irritados. A menina corre, inclusivamente, o risco de não engravidar, o que ditaria o fracasso inevitável do seu casamento. Ou pode ficar gravemente doente. Bernardo Muitawira conta que a filha viveu este “castigo”: ela foi casar-se na cidade da Beira, para onde tinha sido transferida, para ir estudar. Aos 13 anos ela juntou-se a um homem, sem antes observar os mandamentos da tradição: em consequência, ela ficou gravemente doente. “A mãe dela, que entretanto faleceu, morreu muito triste, por não ter recebido o Msana. Por isso a menina ficou muito doente, pois o espírito da mãe não estava feliz. Só depois que vieram com 4500 meticais é que ela melhorou. E assim ela já conseguiu engravidar”, remata com ar de alívio, Muitawira.

Uma outra mãe, Ilda Camudine, com quatro filhas, vive com uma grande dor no coração, porque um dos genros ainda está em dívida e ela teme que a morte chegue primeiro que o dinheiro. E conta”:

“Do casamento da minha primeira filha eu recebi um boi e o pai 10 mil meticais. Mas já do segundo casamento nada recebi, pois o noivo apenas tirou tirou 500 meticais. Isso me dói muito porque os meus filhos rapazes, nas famílias onde casam, estão a pagar! Pelo que estou a ver, vou morrer sem ver o “msana” da minha filha. Mas parece que nada posso fazer, apesar do meu coração estar a doer”, desabafa Ilda Camudine.

Por seu lado, Abel António relata o “castigo” que os espíritos dos antepassados infligiram a uma sobrinha, que casou sem obediência à tradição: “Há uma sobrinha minha que fugiu de casa e foi viver com um homem, sem observar o costume. Ela tem catorze anos, mas não conseguia engravidar. Ela teve uma gravidez psicológica: a barriga dela cresceu e até foi abrir ficha no hospital, mas não tinha nenhum feto. Depois fizeram operação porque já passavam dos nove meses, mas da barriga dela não saiu nenhum bebé”.

Assim, a vida sexual reprodutiva da rapariga é manipulada pelos pais, privando as filhas de um desenvolvimento são e percurso escolar prolongado, através da evocação de mitos, centrados na intimidação com a ira dos antepassados, que podem bloquear a capacidade da jovem, de gerar filhos E, numa sociedade onde a maternidade é a principal finalidade do casamento, a infertilidade da mulher é vista como uma tragedia fatal. E assim a tradição vincula a fertilidade feminina à virgindade, mas tendo como objectivo real assegurar que a rapariga seja fonte de rendimento.

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